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A Convenção 190 da OIT e sua importância no enfrentamento da violência e assédio laboral

Amparado em terminologia protetiva mais abrangente, o instrumento normativo oriundo da Organização Internacional do Trabalho traz importantes avanços com a proibição da violência e assédio num ambiente laboral ampliado.

No dia 25 de junho de 2021, passou a ter vigência internacional a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe sobre violência e assédio no âmbito laboral, suscitando sérias e importantes reflexões acerca de sua relevância, além de expectativas tocantes à sua internalização pelo Brasil1.

Origem e missão da OIT

Hodiernamente agência da Organização das Nações Unidas (ONU)2, a OIT é uma organização internacional com personalidade jurídica3 própria, de caráter tripartite – trazendo à mesa governos, empregadores e trabalhadores. Originalmente criada na conjuntura da Liga (ou Sociedade) das Nações, em 1919, pelo Tratado de Versalhes, correu o risco de tornar-se opaca – quando não esvaziada -, em razão do esfacelamento da mesma Liga das Nações, movendo então a comunidade internacional a, ainda em 19414, reafirmar a conveniência e a importância de suas atividades.

Em 1944, o advento da Declaração de Filadélfia enfatizou, dentre outros tópicos, a essencialidade da cooperação internacional para a segurança social da humanidade, ampliando os princípios e as competências anteriormente previstas no Tratado de Versalhes, bem como reafirmando a imperatividade da justiça social, do tripartismo, e englobando programas de cooperação técnica e de colaboração com outros organismos internacionais5. A ascensão da ONU, ademais, levou a um acordo desta com a OIT, em 1946, mesmo ano da aprovação do novo texto da Constituição da OIT, que tem como parte integrante a referida Declaração de Filadélfia.

Nesse contexto, a Organização Internacional do Trabalho abraçou missão maior, deixando de tratar apenas da regulamentação das condições de trabalho e do seguro social, para a tutela dos direitos humanos fundamentais do trabalhador6. Nas palavras da própria OIT, dedica-se a definir padrões de trabalho, desenvolver políticas públicas e elaborar programas que promovam trabalho decente para todas as mulheres e homens.

A Convenção 190 da OIT

A Convenção 190 foi editada em 2019, ano de comemoração do centenário da Organização Internacional do Trabalho e, na ocasião, Argentina, Finlândia, Espanha e Uruguai7 manifestaram interesse em anunciar a sua ratificação, embora todos os países participantes da reunião tenham se mostrado inclinados a honrar o compromisso de cumprir suas diretrizes à prevenção e eliminação de condutas violentas e assediadoras.

O conteúdo normativo trazido pela referida Convenção8 é de extrema relevância para conferir e consolidar a efetividade dos direitos humanos. Isso, pois o trabalhador constitui sujeito vulnerável e exposto à violação de direitos – sobretudo ao da dignidade da pessoa humana -, afinal, não é novidade que muitas vezes acaba se submetendo a condições degradantes apenas como puro e simples meio de garantir sua sobrevivência.

As situações adversas tantas vezes suportadas pela classe trabalhadora se dão por diversos fatores, com destaque à falta de conhecimento e informação acerca dos direitos que lhe assiste e de – em aspecto ainda mais preocupante – respaldo legal, em clara situação de desequilíbrio e hipossuficiência não só econômica, mas, principalmente, jurídica.

Diante desse cenário, que se estende à realidade mundial, e das práticas inaceitáveis que comumente se verificam no ambiente do trabalho, as normas positivadas no instrumento visam a garantir a dignidade do trabalhador, coibindo a violência e o assédio, também quando praticados por motivos de gênero.

Da redação do dispositivo inaugural da Convenção 190 se faz possível notar que se optou pela utilização de termos mais abrangentes, num claro intuito de expandir a proteção ao obreiro e modernizar a questão. Além de ter conferido conceito para a expressão conjugada “violência e assédio” (violence and harassment) – como comportamentos e práticas inaceitáveis capazes de gerar sofrimento físico, psicológico, sexual ou econômico, inclusive por questões de gênero -, o texto contempla tipos de abuso menos óbvios, como o assédio organizacional, mansplaining, gaslighting e o cyberbullying.

Observa-se que não se fala na coibição da violência e assédio apenas no local de trabalho (workplace), mas no “mundo do trabalho” (world of work), vocábulo que designa notória amplitude, no qual se inserem o trajeto entre a casa e o local de trabalho e na esfera das comunicações, nos termos do artigo 3, “d” e “f”. Importa ressaltar que tais normas são expressamente direcionadas a todos, independentemente de gênero e, ainda, acolhe trabalhadores formais e informais, estendendo-se aos voluntários, estagiários, vendedores ambulantes e trabalhadores domésticos, laborem em ambientes urbanos ou rurais, indistintamente, conforme prevê o artigo 2.

Importa ressaltar que a Convenção 190 elege a igualdade de gênero como sólido pilar do trabalho decente, em evidente contemplação ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao da não-discriminação, notável ao longo de todo o texto normativo, dada a intencional abrangência de seus termos.

Além de estabelecer conceitos, coibir práticas e ampliar a proteção ao trabalhador, o instrumento normativo assume como essenciais informação e treinamento à efetivação de seus objetivos, mormente para que trabalhadores, versados, tomem consciência da gravidade e nocividade de tais práticas e, assim, consigam de fato se resguardar, inclusive por meio da tutela jurisdicional, conforme se depreende do conteúdo de seus artigos 9, 10 e 11.

Ainda, o texto normativo da Convenção 190 salienta o mérito de investigações sobre essas práticas e o desenvolvimento de soluções internas ao ambiente laboral – bem como externas, nas Cortes e Tribunais -, sem olvidar o privilégio conferido ao apoio às vítimas, de forma de ampliar o manto de proteção sobre esse grupo, protegendo-o frente a suas vulnerabilidades.

Ao que se verifica, não há outra fonte normativa internacional que verse sobre a matéria de forma proibitiva. Nacionalmente, no Brasil, apenas dispõe-se sobre o assunto em leis estaduais e municipais, em evidente defasagem e necessidade de atualização e complementação, a fim de conferir maior efetividade de direitos, máxime em razão de a Constituição Federal de 1988 (CF) ter sido desenhada e promulgada sob a garantia aos direitos sociais e a políticas voltadas às relações de trabalho.

No mesmo sentido, o Ministério Público do Trabalho, por meio da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho, ainda no ano de 2020, veiculou manifestação pública9 a favor da internalização do instrumento em análise, como forma de combate às práticas que degeneram o ambiente laboral, afetam a produtividade e a autoestima do obreiro, e até mesmo figuram com a principal causa de interrupção de muitas carreiras profissionais.

Internalização de normas internacionais no Brasil

O processo de incorporação de tratados se dá por meio das seguintes etapas: negociação e assinatura (seara internacional), referendo ou aprovação pelo Congresso Nacional (seara interna), ratificação do tratado (internacional), edição de um decreto presidencial (interna). Sem grandes digressões acerca das regras, do funcionamento e de peculiaridades de cada das etapas supramencionadas, anota-se que a ratificação de tratado objetiva conferir vigência (frente o país) à norma convencional na esfera do Direito Internacional, enquanto a edição de um decreto presidencial incorpora o tratado ratificado ao ordenamento brasileiro10, permitindo sua aplicação interna. Essa última etapa, do referido decreto presidencial, embora não prevista na CF, foi sob sua guarida apreciada pelo STF, tendo tal decreto funções de promulgação (existência), a publicidade (validade) e executoriedade (eficácia) do texto do tratado sob a égide da Constituição Federal brasileira. No mais, caso a norma internacional (internalizada) sofra controle e seja declarada sua inconstitucionalidade, o Poder Executivo deve denunciar o tratado na seara internacional.

Sendo a regra geral que tratados internalizados equiparam-se às leis ordinárias brasileiras, os tratados versando sobre Direitos Humanos recebem tratamento diferenciado em nosso sistema. Até 2004, todos os tratados incorporados tinham status normativo (equivalência) de lei ordinária federal. Tal entendimento era o do Supremo, em 1977, à época do julgamento do RE 80.004, no sentido de que antinomias entre tratados internacionais e leis federais passariam a ser, internamente, solucionáveis por meio dos critérios de hierarquia, especialidade e cronologia.

A emenda constitucional 45/2004 (EC 45), por sua vez, dentre outros dispositivos, trouxe o parágrafo 3º ao artigo 5º da CF. Ficou estabelecido, então, que tratados de Direitos Humanos (requisito material) aprovados pelo mesmo procedimento de votação11 das emendas constitucionais (requisito formal) teriam equivalência às referidas emendas constitucionais. Dessa forma, a EC 45 consagrou a figura do bloco de constitucionalidade, que consiste nas normas constitucionais (emendas à Constituição incluídas) e nos tratados incorporados conforme previsto no, então recém-chegado, §3º do artigo 5º da CF. Em 2008, frente a uma pendência desde o advento da EC 45, diante da hipótese de incorporação ao ordenamento jurídico pátrio de norma internacional de Direitos Humanos sem, porém, aprovação pelo procedimento previsto no supracitado §3º do artigo 5º, o STF, no julgamento do RE 466.343-SP, criou a categoria da supralegalidade, aplicável aos tratados de Direitos Humanos que não incorporados pelo procedimento cabível às emendas constitucionais – aqui, a existência somente do requisito material (conteúdo)12. Assim, as normas incorporadas com caráter supralegal ficam abaixo do bloco de constitucionalidade e acima da legislação complementar e ordinária13.

Em suma, o nível hierárquico dos tratados internacionais incorporados dependerá da conjugação de dois fatores: matéria e procedimento de internalização. Sob esse prisma, são divididos em três níveis: bloco de constitucionalidade, normas supralegais, demais normas (ordinárias e complementares). O controle sobre aquelas que integram o bloco de constitucionalidade poderá ter cunho material (conteúdo, não ofender ou abolir cláusulas pétreas – artigo 60, §4º, CF) ou formal (respeito ao procedimento legislativo das emendas constitucionais).

Daí, questiona-se: e a Convenção 190 da OIT, como se enquadraria em seu processo de internalização no ordenamento jurídico brasileiro? Não há dúvidas de que o instrumento normativo traz consigo regras relativas a Direitos Humanos, cabendo, então, ao presidente da República, encaminhar ao Congresso Nacional o texto do tratado com mensagem no sentido da aplicação do procedimento em consonância com o artigo 5º, §3º, CF. Havendo aprovação da Convenção nestes termos, esta passaria a compor o bloco de constitucionalidade; do contrário, ainda assim teria a si atribuído caráter de supralegalidade – o status de lei ordinária mostrar-se-ia totalmente contrário ao espírito que motivou a elaboração da Convenção 190, harmônico aos mais altos princípios da Constituição Federal e gerando mais conflitos do que os solucionando. Ademais, há teorias, particularmente na esfera trabalhista internacional, como a da acumulação e a do conglobamento14, cada qual a seu modo procurando dar prevalência e aplicabilidade interna a normas mais benéficas aos trabalhadores – destaque à segunda, em sintonia com o princípio da complementaridade de tutelas e da soberania do Estado quando defendendo a aplicação da norma mais favorável na comparação das fontes de forma global. No entanto, para que se caminhe rumo à maior efetividade dos direitos humanos e à proteção do trabalho decente, faz-se essencial que seja dado o primeiro passo: proceder à assinatura da Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho.

Fonte: MIGALHAS

https://www.migalhas.com.br/depeso/347870/a-convencao-190-da-oit